VIOLÊNCIA FAMILIAR

VIOLÊNCIA FAMILIAR

O incesto e a família incestuosa

 

1 INTRODUÇÃO

Na história da humanidade, as formas de organizações familiares sempre sofreram modificações influenciadas por contextos socioeconômicos, por valores culturais e religiosos. Nas últimas décadas, a família voltou a ser discutida por várias áreas do conhecimento.

Estudos a respeito da temática da família ampliaram-se, sobretudo, desde a modernidade até o momento contemporâneo, trabalhando sobre questões de elevada importância, em geral, priorizando o campo histórico antropológico-social e o subjetivo. Muitos desses estudos desenvolvem correlações interdisciplinares constituindo ricas articulações.

Elizabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista, faz uma análise histórica incluindo várias áreas do conhecimento, pontuando aspectos de grande interesse para a psicanálise e relacionando os planos sociais, físicos e mentais.

É uma proposta que possibilita entrar em novos modelos familiares, que Roudinesco, de forma provocadora, intitula de “família em desordem” e convida para penetrar nos segredos de diversos distúrbios.

O desejo dessas novas famílias surge no meio de diversas alterações da instabilidade econômica contemporânea, fazendo com que os seus membros mudem de papel, sem abandonar a forma do agrupamento que sustenta e protege a humanidade.

Na busca de conhecimento, este grupo de trabalho dá ênfase à proibição do incesto como princípio fundamental, assegurador da passagem da natureza à cultura, uma função simbólica, fato de cultura e de linguagem, que diferencia o mundo humano do mundo animal.

Este trabalho aborda a violência familiar e o incesto, tema emergente no mundo contemporâneo. Para tratar do assunto, buscou-se novos autores que pudessem consubstanciar as diversas discussões que emergiram.

Apresentaram-se novas pesquisas sobre a família e a história da violência social influenciada pelas pressões capitalistas. Buscou-se um caso clínico para realizar uma análise teórica a partir de autores da área da psicanálise, antropologia e sociologia. Interessantes textos compuseram a análise da família incestuosa. Os textos de Freud, privilegiados na análise, foram Totem e tabu, O mal-estar da civilização, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e Além do princípio do prazer.

 

2 OBJETIVOS

Este trabalho busca integrar conhecimentos adquiridos nos módulos (i) Metodologia da Pesquisa Psicanalítica, (ii) a Experiência em Psicanálise e (iii) Epistemologia Freudiana, no Curso de Formação em Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Com base na leitura de Elisabeth Roudinesco (2003), propõem-se os seguintes objetivos:

•             estudar textos de psicanálise relacionados ao incesto e à violência familiar;

•             estudar artigos e obras relacionadas com violência familiar, com ênfase no incesto;

•             discutir um possível caso clínico e realizar associações com textos psicanalíticos.

 

3 DESENVOLVIMENTO DO TEMA

3.1 A família como instituição humana

Bem marcada é a concepção de família como instituição humana duplamente universal. Ela resulta da associação da cultura com a natureza, que passa pela ordem do biológico na reprodução, assinalando que a própria palavra família encerra diferentes realidades, tendo, após longa evolução (séc. XVI ao XVIII), chegado ao modelo nuclear do Ocidente,.

De acordo com Roudinesco (2003), três grandes períodos são considerados: (i) a família tradicional, sob a ordem do mundo imutável e submetida à autoridade patriarcal, “Deus Pai”; (ii) a família “moderna”, de lógica afetiva, sob divisão de poderes entre Estado e pais; (iii) a família “contemporânea” ou “pós-moderna”, valorizadora da vida privada, envolvida pela complexidade com a autoridade, cuja transmissão é cada vez mais problemática (com rupturas e recomposições conjugais), imagens destituídas de pai heróico ou guerreiro. Percorrendo figuras paternas tanto da mitologia grega quanto as autoritárias da inquisição, observa-se o amesquinhamento que o lugar paterno foi sofrendo, com visível enfraquecimento (1757) — em paralelo a um discurso misógino — até maior deterioração da figura paterna no declínio da monarquia, quando houve um elevado temor à feminilização do corpo social.

Na busca de variados conceitos sobre família, encontrou-se que ela é considerada hoje como um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas (ou não) por laços consanguíneos. Esse núcleo acha-se relacionado com a sociedade, que lhe impõe uma cultura e ideologia particulares bem como recebe dele influências específicas (SOIFER, 1983).

Desde o século XIX, a família ocupa um lugar importante na produção da subjetividade, na defesa da moral e na reprodução de valores, pois representa o alicerce de toda estrutura da sociedade (GOMES, 2009).

A criança necessita do seu grupo familiar para o desenvolvimento psíquico e, de acordo com Freud, da relação narcísica de objeto para a relação objetal que culmina com a instalação do superego (tardio) e a identificação com os pais ou com seus substitutos. Aparece a evolução que vai do egoísmo e do egocentrismo para o amor e a solidariedade (SOIFER, 1983).

A família persegue o objetivo de uma defesa de vida para a criança com o processo da educação, desde o cuidado físico, o desenvolvimento da capacidade de relacionamento familiar e social, a aptidão para atividade produtiva e para a inserção profissional, a transmissão e a criação de normas culturais destinadas à convivência em geral. Os pais ensinam seus filhos por meio do ato de transmissão dos conhecimentos, exercendo autoridade e ajudando, assim, os filhos a discernirem a fantasia da realidade. Dessa forma, passarão a colocar limites para a contenção dos impulsos destrutivos — evitando a autoagressão, que é decorrente das pulsões de vida e morte —, expressos através da fantasia (SOIFER, 1983).

Apesar de diversos conceitos apontarem a família como uma organização de proteção e espaço de crescimento e desenvolvimento do sujeito, não raro há notícias que informam que esse grupo se transforma num lugar de diversos tipos de violência.

3.2 A violência social e sua repercussão na família

Tratar da violência na família inclui abordar a violência social e econômica, uma vez que seus reflexos incidem sobre a família, bem como sobre as empresas, escolas e organizações diversas. Em Freud e Lacan, verifica-se constante preocupação com o que se passa na cultura, para além dos fenômenos observados.

A história da humanidade é repleta de atos considerados violentos e agressivos, já descritos até mesmo na Bíblia e na filosofia clássica. Jacques Alain Miller diz que se vive num mundo de guerras permanentes, e o historiador e pesquisador brasileiro Luís Mir caracteriza esses tempos como época de guerra civil (STOETZEL, 1967).

A agressividade, para Freud, está ligada à pulsão de morte (Thanatos) e, também, faz parte das pulsões de vida (Eros). A pulsão de morte é uma pulsão que leva o organismo à busca de seu estado primevo e inorgânico. A pulsão de vida impulsiona o sujeito ao contato com o outro e com a realidade. Freud acredita que essas duas pulsões estariam “misturadas mutuamente”. A pulsão de morte em alguns momentos poderia estar a serviço de Eros e projetar a agressividade para o mundo externo; em outros momentos, com a repressão da agressividade, ela pode voltar-se para o indivíduo em forma de autodestruição. A agressividade é, portanto, uma característica constitutiva da natureza humana (FREUD, 1929).

Para Ferrari (2006), a agressividade é constituída na identificação narcísica e na estrutura do Eu. Na identificação narcísica, a agressividade apresenta-se nessa alienação do sujeito ao desejo do Outro. Na estrutura do Eu, a agressividade está localizada na ruptura da identificação imaginária. Segundo o mesmo autor, não existe identificação sem agressividade nem agressividade sem identificação. A relação com o Outro é sempre agressiva, mesmo que sublimada.

A violência desencadeia sintomas como a fobia social, induz às passagens ao ato e traz mudanças importantes para o cotidiano das pessoas. A pulsão pode ter outros destinos que não a violência, e a agressividade pode ser recalcada ou sublimada. A violência aponta uma ausência de simbolização e presença de um certo vazio; dessa forma, tudo o que não é simbolizado aparece em ato (COSTA, 1984).

Com esses sintomas a sociedade atual encontra dificuldade em manter os laços sociais, já que a violência gera uma desagregação nas relações. Assim, a violência não deve ser vista apenas como um sintoma, mas como uma modalidade de devastação dos laços sociais (COSTA, 1984).

Lacan fala de uma violência que está no ato de agredir diante da impossibilidade de dizer. A palavra é usada como mediadora das relações. Mas quando perde essa função, ocorre a passagem ao ato. Segundo Ferrari (2006), Lacan constatou que a violência supõe uma saída através da passagem ao ato, retornando, no real, o gozo que escapa ao sentido (FERRARI, 2006).

3.2.1 A influência do capitalismo na produção da violência

Na atualidade, a subjetividade dos sujeitos traz as marcas do capitalismo. Nesse regime, todos são proletários, despossuídos, nada têm para estabelecer laço social, vivem em insatisfação permanente. É nessa situação que a violência confunde-se com a agressividade e que o termo violência torna-se uma categoria ampla (STOETZEL, 1967).

Os quatro discursos propostos por Lacan — discurso do mestre, da histérica, do analista e da universidade — mostram que, na neurose, existe uma falta por estrutura que permanecerá sempre. Mostram também que o real é impossível de ser suprido. O discurso atual, que é o capitalista, coloca o real como possível. Baseado na noção de que desejo é falta, são criados vários objetos artificiais para suprir os desejos.

Não existe a separação entre sujeito e objeto, e, sem essa barra, o objeto vai direto para o sujeito, o que traz angústia. O sujeito passa todo o tempo em busca desses objetos que prometem felicidade completa. Crê que está no comando de suas escolhas e que tem liberdade, mas, na verdade, está a serviço desses objetos de consumo. Acredita-se que o Outro sempre tem um gozo maior que o seu e, como todos querem o gozo, isso acarreta uma desigualdade imensa, gerando violência, pois a pessoa fará de tudo para ter esse gozo idêntico.

A violência, então, é uma manifestação desse real sem lei, em que todos os gozos, aparentemente, são possíveis. É o imperativo do gozo, gozar a qualquer custo, já que tudo é permitido (COSTA, 1984).

3.2.2 A violência intrafamiliar

Com a perda de antigas referências, pais e filhos encontram-se desorientados quanto ao papel a ser desempenhado por eles mesmos. Há uma busca dos seus limites, deveres e direitos, podendo constituir espaço para a violência. A falta de comunicação e de valores podem ser os primeiros passos de uma crise de poder que passa a ser um quesito gerador da violência. Quando ocorre a violência física dentro da família, essa pode ser entendida como uma ação imposta pelo poder do adulto fragilizado.

A violência sexual acontece quando a coação visa à participação em práticas eróticas. O abuso sexual é todo ato ou jogo sexual entre o familiar perante a criança indefesa, podendo haver contato físico, ou não — ou, até mesmo, o uso de força física (GOMES, 2009).

Na atualidade, não é incomum encontrar alguns pais despreparados para orientar seus filhos, e, muitas vezes, o modelo de educação encontra uma saída natural na violência física. Muitos fatores podem ser elencados como contribuintes para esta “desordem familiar”, entre os quais destacam-se: o declínio da autoridade paterna, a emancipação feminina, a rebeldia dos jovens, a liberação sexual, o excesso de liberdade e a individualidade (GOMES, 2009). Todos esses elementos mencionados podem encontrar o seu apoio no capitalismo, mesmo que as pessoas não estejam informadas disso.

Ao tratar de violência, é importante lembrar que as carícias, a apresentação de material pornográfico para a criança e o uso de linguagem erotizada também são consideradas abuso sexual. Pesquisas apontam que 70% dos casos registrados de abuso sexual de crianças e adolescentes são cometidos por pai e padrasto (GOMES, 2009). Isso significa que esse tipo de violência ocorre dentro da família, denominado, portanto, de violência intrafamiliar.

Hoje os vínculos estabelecidos na família são ligados à individualidade, à liberdade, à igualdade de direitos e à falta de confiança no grupo social, o que gera uma sociedade pouco preocupada com o outro e pais sem o compromisso de educar seus filhos. Esses aspectos podem trazer como consequência crianças com caráter frágil, sem comprometimento com o outro. Na vida adulta, esses pais transmitem o que aprenderam na infância tratando os seus da forma como foram educados. É comum observar que indivíduos que agridem hoje, já foram vítimas de abuso na infância. Assim, pode-se inferir que a violência não é hereditária e sim aprendida (GOMES, 2009).

Como os papéis dos pais não estão claros, esses se tornam frágeis e transmitem para os filhos, também, insegurança. As famílias aparecem como vários egos, percebidos como pessoas com estruturas psíquicas diferentes inclusas numa rede vincular (BERENSTEIN, 1990, p. 54), ou seja, dentro da família, as pessoas relacionam-se intersubjetivamente, desempenham diversas funções e estão afetivamente investidas de significado. (GOMES, 2009).

3.3 Um caso clínico em debate

Uma mãe chega ao Centro de Saúde manifestando angústia, solicita exames porque a filha de 13 anos estava vomitando, com mal-estar, e acredita que a causa poderia ser lombriga ou outro verme.

Nessa instituição, era de praxe a enfermeira e o médico realizarem o acolhimento em dupla e, assim, receberam a mãe com a menina. Depois de algum tempo de conversa, os profissionais pediram para falar a sós com a menina.  A mãe relutou, mas consentiu, pois queria muito resolver o problema de saúde da filha.

No consultório, com a presença dos dois profissionais, a menina revelou que era molestada pelo pai desde os nove anos, o qual a ameaçava se falasse a alguém. Por coincidência, houve uma briga na fila do atendimento em razão da demora, pois havia muita gente esperando. Uma das pessoas da fila jogou uma pedra em uma janela de vidro e um dos agentes comunitário de saúde foi atingido. A polícia foi chamada para fazer a ocorrência dos fatos da janela quebrada e do profissional ferido.

O médico e a enfermeira fizeram os exames clínicos e aproveitaram a presença da polícia para fazer a denúncia. No relato desses profissionais, além do registro da briga, a polícia registrou, também, a queixa da adolescente contra o pai, a contragosto da mãe. O pai foi preso em casa, minutos depois, e conduzido à delegacia. Outros exames foram feitos e comprovaram a gravidez da filha. O pai foi condenado a três anos de detenção, e a mãe foi encaminhada ao serviço de psicologia para tratamento. Foi acionado o Conselho Tutelar para acompanhar a família enquanto o pai estava sendo preso.

Posteriormente, descobriu-se que a mãe tomava tranqüilizante e dormia cedo e, no dia seguinte, exercia a função de catadora de papel para o serviço de reciclagem. O pai consumia álcool. Na semana seguinte ao evento, o serviço de psicologia foi acionado para iniciar o tratamento da menina e para trabalhar o assunto com os profissionais de saúde que estavam chocados. O caso e as informações foram extraídos de Oliveira (2005, p. 137).

3.3.1 Análise do caso: o que dizem os autores

Martine Lamour (1997), em seu estudo sobre abusos sexuais em crianças (na maioria, meninas), destaca o segredo e o silêncio durante a síndrome de adaptação no momento pós-traumático. Além da violência física, há o momento da descoberta como um trauma para a criança. Segundo Lamour (1997, p.55) “as ameaças tornam os efeitos da revelação, ainda, tão perigosos quanto o próprio ato. A criança nunca diz nada: ela teme a punição ou a incapacidade dos adultos de protegê-la da violência e de seu agressor”.

É muito confuso para a menina, do caso em estudo, sair sozinha da situação, pois para ela o pai é provedor, protetor, professor e aquele que tem poder. A menina pode ter tido mal-estar, mas a atitude do pai, provavelmente, pode ter lhe mostrado que a vida é assim, que isso é natural.  É a naturalização do incesto? Como ela pode fazer uma crítica desse ato paterno se, para ela, o pai é a proteção? De acordo com Saffioti,

A vitimização de crianças constitui fenômeno extremamente disseminado exatamente porque o agressor detém pequenas parcelas de poder, sem deixar de aspirar ao grande poder. Em não se contentando com sua pequena fatia de poder, que continua a almejar, exorbita de sua autoridade, ou seja, apresenta a síndrome do pequeno poder (SAFFIOTI, 1989, p.19).

O pseudopoder destinado ao homem permite a manifestação da sua fragilidade como pai, mas é gerador de um forte silêncio. Em outras palavras, o silêncio da criança que sofre a violência sexual, o silêncio da mãe, o silêncio da família, o silêncio da comunidade, que guarda o segredo, podem ter ponto comum, qual seja a vergonha de um incesto ocorrido. Há ali uma família ou uma comunidade incestuosa. É como se a comunidade reconhecesse que a etapa do incesto já deveria ter sido vencida e, ainda, está acontecendo. Isso traz um sentimento de fracasso grupal que leva a família ao silêncio.

Quanto mais dominada for a mulher, mais difícil lhe será reunir as forças necessárias para proteger a sua ninhada dos ataques do macho. Muitas há que denunciam o agressor. Mas ter coragem para tanto pode ser o resultado de anos de convivência com o incesto pai-filha ou padrasto-enteada (SAFFIOTI, 1989, p.21).

Em situações semelhantes, as famílias, às vezes, buscam outros caminhos, como a expulsão da filha de casa ou aborto forçado, quase sempre em condições de risco. Essa mãe optou por tomar a filha pela mão e buscar ajuda profissional da equipe de Saúde da Família. Neste caso, nesta realidade, pode ter sido a busca do lugar mais conhecido e mais acessível à sua realidade: o Centro de Saúde. Apesar disso, ela tenta esconder o pequeno poder do pai.

O pequeno poder, exatamente em função de sua pequenez, conduz, freqüentemente, à síndrome caracterizada pela mesquinhez. Ao invés de atuar bem humorada e magnanimamente, a pessoa em síndrome do pequeno poder age de mau humor e mesquinhamente… O homem detentor do pequeno poder crê ser necessário exercitar-se, a fim de, algum dia, vir a encarnar plenamente a figura do macho poderoso. Mais que isto, acredita capacitar-se para o exercício do grande poder tendo síndromes sucessivas do pequeno poder. Ao tentar agigantar seu poder, não faz senão apequená-lo ainda mais. Entretanto a síndrome do pequeno poder tem conseqüências nefastas para as pessoas por ela atingidas. Crianças são espancadas, assassinadas, estupradas por adultos que, na maioria das vezes, têm justamente a função de protegê-las (Saffioti, 1989, p.17).

A passagem do natural para o cultural foi construída lentamente pela humanidade. O estudo de Engels (1991) sobre a formação da família mostrou um grande esforço da humanidade para conseguir a ruptura do incesto, mas o processo é irreversível, pois não há como o humano voltar a ser somente natureza. Talvez tenha sido a grande luta da humanidade, qual seja, o ser humano se refazer, integrando as dimensões biológica, cultural e histórica.

Se tal proibição é necessária à constituição da família, é que, além do primado natural induzido pela diferença sexual, intervém outra ordem da realidade, que, desta vez, não deriva de um fundamento biológico. E, com efeito, se a instituição da família repousa na existência de uma diferença anatômica, supõe também, na mesma proporção, a existência de um outro princípio diferencial, cuja aplicação assegura, na história da humanidade, a passagem da natureza à cultura. A proibição do incesto é, portanto, tão necessária à criação de uma família, quanto a união de um macho com uma fêmea (ROUDINESCO, 2003, p. 15).

Essa construção está ligada ao simbólico e proíbe os diversos incestos, em vários graus. A civilização sempre colocou grandes sacrifícios para a humanidade no que diz respeito não somente à sexualidade, mas também à agressividade. Isso significa que o ser humano negociou uma parte de seu gozo pela segurança e pela cultura, mas Freud lembra que a mulher não ficou em boa posição nessa troca.

O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil (FREUD, 1974, p. 137).

É importante observar, na citação acima, que somente o homem (aludindo à horda primeva) tinha liberdade e que todos os demais deveriam estar submetidos. Era a presença de um macho hostil, autoritário e dominador. Do ponto de vista geral, parece que a sociedade está inacabada. Sempre que reaparece um incesto e violência há um sinal de retorno do natural. É possível e necessário fazer as intervenções para que o processo não fique estagnado. Isso tem seu preço.

O estudo de Catherine Millot ajuda a compreender a passagem do natural para o cultural:

Se o fundamento da civilização reside na maleabilidade das pulsões perversas, devemos esperar que o meio social se esforce ao máximo para encaminhar essas pulsões para fins culturais, obstruindo com isto as manifestações não concordantes com o que visa à cultura (MILLOT, 1987, p. 25).

Na violência sexual, manifestam-se elementos da pulsão de morte. Quando o pai insiste, durante quatro anos, em praticar a violência sexual contra a filha de 9 até os 13 anos de idade, fica indicada a presença da naturalização de um ato de muita gravidade, inaceitável social e culturalmente.

O consumo da mídia televisiva também dificulta a passagem para uma cultura diferenciada daquela baseada no consumismo irreflexivo. Em qualquer hora do dia, são apresentadas cenas de sexo explícito e, como se não bastasse, acrescidas de uma mistura de gozo sádico ou violento.

3.3.1 Análise do caso: família incestuosa

O quadro da menina que é abusada pelo pai até surgir a materialidade de uma gravidez remete-nos a diversas interrogações sobre a participação da família e da sociedade no incesto.

A ideia de família gerada pela sociedade deve corresponder a um espaço de segurança, acolhimento e felicidade. Porém, uma família que abriga relações incestuosas derruba essa imagem e traz várias desordens para seus integrantes. O ambiente acolhedor é convertido em momentos de temor, angústia e medo. A casa se transforma no local para manter o incesto, e isso só é possível através de um silêncio absoluto que mantém o caso na invisibilidade.

Em Totem e Tabu, Freud (1913) coloca a proibição do incesto como ponto principal para a criação da civilização humana. O mito edipiano é originado pelo mito da horda primitiva, e no Complexo de Édipo a lei da proibição do incesto é instaurada. A interdição do incesto é estruturadora do sujeito e das relações sociais.

Os primeiros desejos sexuais da infância são do tipo incestuoso e, no fim do Complexo de Édipo, esse desejo é reprimido e configura-se como a causa das neuroses. Segundo Cromberg (2001), não existe uma aversão inata às relações incestuosas no ser humano, ela afirma:

O tabu contra o incesto instaura o processo de humanização porque estabelece lugares geracionais diferentes que permitem, em primeiro lugar, um processo de narcisização da criança pelos pais, fundamental à sua sobrevivência e, posteriormente, no movimento de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos seus genitores, um processo de diferenciação e subjetivação. (…) O filho reativa também as fantasias edípicas de seus pais. É por isso que o campo de subjetivação parece se constituir levando em conta várias gerações (CROMBERG, 2001, p. 75).

A figura paterna transmite a lei primeira para que todo ser, por viés da linguagem, torne-se sujeito. O pai é quem faz a interdição na relação ambivalente entre mãe e filho, porém nem sempre esse lugar é ocupado pelo genitor biológico, e, assim, para a psicanálise, a paternidade deve ser vista como “função paterna”. Portanto, a constituição psíquica do sujeito está condicionada à forma como a função paterna realiza a interdição aos impulsos incestuosos.

O pai incestuoso não se submete a essa lei primeira: ele abandona seu lugar simbólico de pai e coloca a criança como seu objeto de gozo, substituindo o lugar genital da mãe. Essa mãe ocupa um lugar afetivo precário, e essa omissão é, também, muito cruel para a criança.  Ao permitirem que a satisfação incestuosa seja concretizada, os pais destroem os limites das referências amorosas infantis gerando uma desordem na identificação interior.

Para Pizá (2008), o pai apresenta-se como uma autoridade perversa, que perde a função normativa e acredita ser a própria lei. A atribuição fálica de um pai, que é ser representante da lei e de uma autoridade simbólica, nunca será reconhecida. Além de não assumir afetiva e simbolicamente sua função paterna, não se apresenta como um homem para a mãe. Esse pai não interdita nem proíbe nada.

O incesto é uma situação triangular, com a mãe presente ou ausente. Cromberg (2001) enuncia que a mãe também participa da construção do terreno incestuoso. Há uma cumplicidade das mães em relação aos pais incestuosos.

Esse autor acredita que, se a criança não possui um pai interditor, ela precisa, então, de um lugar materno, uma mãe que barre a violência do pai.

Segundo Barbosa (2008), as mães (ou função materna) demonstram uma indiferença afetiva, não apresentam vínculo amoroso e existe uma frieza em relação ao sofrimento e à dor do filho. São colocados, também, sentimentos de rivalidade e de ciúmes em relação à criança. Os lugares simbólicos de mãe e filho estão trocados. Como não assume a função de proteção materna, a mãe deixa espaço para a solicitação erótica do pai.

A criança assume várias das funções parentais e, assim, é mantida uma falsa aparência de uma família integrada, que cumpre seus papéis. Cromberg (2001) acredita que a criança, consciente ou inconscientemente, seduz o pai e mantém com ele uma hostilidade comum contra a mãe. A mãe coloca a filha para assumir a função de esposa e amante do pai e, dessa forma, livra-se desse papel. O incesto mantém o equilíbrio familiar e evita conflitos.

Para Cromberg (2001), a ação incestuosa configura-se entre pai, mãe e filha e, do ponto de vista psíquico, não é possível culpabilizar ninguém. A criança não deixa de seduzir o pai e fazer uma demanda de amor a ele. Porém, nessa demanda, não quer que o pai viole a lei do incesto, e sim que se autointerdite. É um limite tênue entre a fantasia histérica que deseja a sedução paterna e o ato concreto de sedução paterna. A fantasia de sedução da menina, que é imaginado como sexual, está mais relacionada a um desejo de um encontro afetivo.  A efetivação do ato genital passa a ser um desastre na vida da menina.

As fantasias sexuais infantis são reavivadas no ato do incesto e, por serem realizadas, causam autoculpabilização e intensificam o sofrimento. Ainda, citando Cromberg (2001), este coloca que o ato incestuoso acontece em uma relação preexistente, já que as posições fantasiosas, muitas vezes, dizem respeito a mais de uma geração. Pizá (2004) diz que é um círculo familiar incestuoso. O que não foi elaborado psiquicamente por gerações anteriores repete-se como ato e não mais como fantasia na geração seguinte.

Na violência incestuosa, ocorre uma desorganização psíquica na criança causada pela confusão de sentimentos relacionados aos membros de sua família. A criança apresenta sentimentos ambíguos (amor-ódio) em relação aos pais e outros familiares. É bastante conflituoso viver em um local em que as posições e os lugares são tão confusos, que acabam gerando mal-entendidos nas relações.

Graça Pizá, em seu texto “Afetos secretos do incesto”, cria a expressão “o segredo de família” para se referir ao silêncio que conserva informações sobre o horror e a vida no incesto. A autora diz: “é o segredo que estabelece um sistema de comunicação familiar, cujas palavras e atos escondem “códigos” e “não-ditos” entre pai, mãe e filho” (PIZÁ, 2008, p. 57). É assim que a família incestuosa pode perdurar, por várias gerações, sob o manto do segredo e do silêncio.

As famílias, em situação de incesto, vivem histórias de violência e abandono por várias gerações. Fuks (1998) denomina de transgeracionalidade a situação de repetição em que uma mãe, abusada na infância, permite o abuso em seus filhos. A violência transgeracional é desenvolvida no interior da intimidade familiar e favorece o segredo, impossibilitando sua ruptura por anos.

Para Barbosa, as feridas emocionais geradas pelos abusos são intensas, e o trauma pode permanecer latente. Se não for tratado, acarretará sequelas para toda a vida. Segundo Pizá (2004), alguns sintomas apresentados pelas crianças são depressão, ansiedade, comportamentos agressivos, prostituição, delinquência e uso de drogas; o quadro pode evoluir para a psicose ou o suicídio.

A quebra do segredo gera uma profunda crise. Nesse momento, o apoio social e familiar é muito importante para o ajustamento psicossocial. Através do processo analítico, a criança terá oportunidade de falar sobre o ocorrido e, assim, será possível desvendar o segredo de família e reconstituir algumas partes das histórias dessas crianças.

3.3.3 Análise: o incesto na teoria de Freud

Na teoria freudiana, a proibição do incesto é de fundamental importância para a constituição do sujeito. Através do mito da horda primitiva e do Complexo de Édipo, Freud encontra fundamentos para explicar a origem da proibição do incesto e o momento em que essa proibição é instaurada.

Em Totem e Tabu, Freud (1913) relata o constructo mítico da horda primeva, quando se estabelece a origem do tabu do incesto e da exogamia. Ele retoma a lenda de Darwin sobre a horda selvagem para elaborar sua tese.  Roudinesco e Plon (1998) explicam esse mito: num tempo primitivo, os homens viviam no seio de pequenas hordas, cada qual submetida ao poder despótico de um macho que se apropriava das fêmeas; um dia, os filhos da tribo, rebelando-se contra o pai, puseram fim ao reino da horda selvagem. Num ato de violência coletiva, mataram o pai e comeram o seu cadáver; todavia, depois do assassinato, sentiram remorso, renegaram sua má ação e, em seguida, inventaram uma nova ordem social, instaurando simultaneamente a exogamia (ou renúncia à posse das mulheres do clã do totem) e o totemismo, baseado na proibição do assassinato do substituto do pai (totem) (ROUDINESCO E PLON,1998, p.757).

Segundo Pontes (2004), a exogamia totêmica, que é a proibição das relações sexuais entre os membros do mesmo clã, constitui-se num meio mais eficaz para impedir o incesto num grupo. A proibição do incesto é a reprodução do sistema totêmico, e, do ponto de vista psicanalítico, o totem é uma lei (PONTES, 2004, p. 10).

Roudinesco e Plon relatam que em Totem e Tabu é proposta uma teoria do poder democrático que está centrada em três necessidades: a necessidade de um ato fundador, a necessidade da lei e a necessidade da renúncia ao despotismo. Freud, então, associa a gênese da instituição social a um princípio masculino: o “macho” já não era o seu detentor, uma vez que a instauração da sociedade dos filhos havia permitido a abolição do despotismo do pai e sua revalorização sob a forma da lei (ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 759).

Roudinesco e Plon colocam, ainda, que Freud recorreu a sua teoria da sexualidade infantil, à história de Herbert Graf (O pequeno Hans) e o caso de Arpad (o homenzinho Galo), fornecida por Ferenczi, para constatar duas analogias com o totemismo: a identificação completa com o animal-totem e a ambivalência dos sentimentos em relação a ele (Roudinesco e Plon, 1998, p. 758).

Com Totem e Tabu, Freud conseguiu contradizer todos os trabalhos antropológicos de sua época, mostrando que a proibição tinha como origem não o horror inspirado pelo incesto, mas o desejo que ele suscitava.  A proibição do incesto era a expressão necessária da culpa do homem por um desejo incestuoso recalcado. Foi através dessa inversão essencial que se inscreveu a proibição no cerne da cultura e a relação do sujeito com a lei. Assim, Freud deu início ao debate sobre a universalidade do complexo de Édipo (ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 373).

3.4 Complexo de Édipo e a Lei do Pai

Freud pretendeu trazer, através da psicanálise, uma solução para a antropologia evolucionista, que via na instauração do totem a prefiguração da religião e, na do tabu, a passagem da horda selvagem para a organização em clãs. Fez-se do selvagem a criança, para provar a adequação entre a neurose infantil e a condição humana em geral, elaborando, assim, o complexo de Édipo (ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 758).

Para Pontes (2004, p. 11), o complexo de Édipo nada mais é do que a expressão dos dois desejos recalcados (desejo do incesto e o desejo de matar o pai) contidos nos dois tabus próprios do totemismo. Ele é universal, uma vez que traduz as duas grandes proibições fundadoras de todas as sociedades humanas.

Roudinesco e Plon colocam o complexo de Édipo como uma noção tão central em psicanálise quanto a universalidade da interdição do incesto, a que está ligado. O complexo de Édipo é a representação do inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. Essa representação pode inverter-se e exprimir o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo oposto. Chama-se Édipo à primeira representação, e o Édipo completo é a mescla das duas. O complexo de Édipo aparece entre os três e os cinco anos. Seu declínio marca a entrada num período chamado de latência, e sua resolução, após a puberdade, concretiza-se num novo tipo de escolha de objeto (ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 166).

Segundo Roudinesco e Plon, Freud concluiu que as duas proibições do totemismo — matar o pai e ter uma mulher do clã como objeto sexual — coincidiam com os dois crimes do Édipo: matou o pai e casou-se com a mãe. O pai morto é idealizado, garantindo o pacto entre irmãos; há a renúncia ao gozo sem limites, e todos podem exercer a sexualidade respeitando a regra comum. Esse construto funda a civilização. O pai edipiano substitui o pai gozador, curvando-se ele, também, à lei que enuncia. A horda primeva é a origem do mito edipiano. A proibição instaura o desejo incestuoso. A tese freudiana é que o desejo de incesto é inerente ao homem, e só um interdito, formulado como uma lei, pode afastar dele tal desejo. (ROUDINESCO E PLON, 1998, p.164).

Pontes (2004, p. 11) relata que, para Freud, os povos primitivos são como crianças no desenvolvimento humano, e, em relação ao temor do incesto, esse se constitui como um traço essencialmente infantil na vida psíquica dos neuróticos. A fixação incestuosa tem um papel importante na vida psíquica inconsciente, sendo o complexo nuclear das neuroses.

A psicanálise estuda o conteúdo do inconsciente — contido na construção cultural do tabu, traduzido para a análise do homem moderno — e a conservação do tabu, através das instituições, pessoas e relações. Pontes diz que o homem cria para si mesmo proibições-tabu individuais e que as observa tão rigorosamente como o selvagem às restrições de sua tribo ou de sua organização social. A esse processo autopunitivo e ambivalente, Freud denomina neurose obsessiva ou enfermidade do tabu. A transmissão do tabu fica refletida nas neuroses pela tendência do desejo inconsciente a deslocar-se sobre novos objetos utilizando os caminhos da associação. Desse modo, Freud chancela que há uma relação indiscutível entre a proibição do incesto, o totem e o tabu e as neuroses. Assim, com base no estudo da proibição do incesto, os seres humanos criam estratégias para lidar com seus desejos e com sua sexualidade (PONTES, 2004, p. 12-13).

3.5 A Lei do Pai

A princípio, o sujeito constitui-se como um ser que pensa, age de acordo com a sua vontade e assume as consequências dos seus atos. É um ser complexo que traz consigo faltas, limitações e desejos de acordo com sua história. O sujeito não nasce pronto, ele se torna sujeito aprendendo com os valores e normas da sociedade na qual está inserido. Daí a importância da internalização do mito do Édipo para a formação deste sujeito, pois “é a partir da lei da proibição do incesto que se permite estabelecer o limite entre cultura e natureza’’ (ZANDONADI, Nélia Maria, 2007, p. 232).

Lacan (apud ZANDONADI, p. 232-233) diz que

(…) o pai é, com efeito, o pivô, o centro fictício e concreto da manutenção da ordem genealógica que permite a criança se incluir de maneira satisfatória no mundo (…). A ausência de um pai real na família não significa necessariamente a ausência do pai simbólico, e a presença do pai real não garante a inclusão do pai simbólico. É por meio da metáfora paterna e de seu mecanismo fundamental que se dá ao pai a função simbólica, remetendo-a ao desejo materno, de forma que a criança nomeia o pai por aquilo que ela supõe ser o desejo da mãe.

De acordo com Zandonadi (2007, p. 37), “Lacan nos ensina que é com objeto, submetido ao desejo do outro, que um sujeito tem seu lugar no mundo. Essa condição de submetimento ao significante é da ordem da lei do pai, que interditando o desvario pulsional do incesto, protege a criança do desamparo fundamental e a insere na ordem simbólica, possibilitando que ela deseje”. Dessa forma, com a lei paterna estabelecida, a criança recalca o seu desejo e percebe que existem leis que não podem ser transgredidas. “O pai, na constituição do desejo, inscreve o falo no campo do outro, proporcionando um basta ao incesto, ao transbordamento do gozo” (ZANDONADI, 2007, p. 233).

Na clínica e no cotidiano, observa-se o enfraquecimento do nome do pai como resultado de uma castração simbólica, que não foi bem elaborada pelo sujeito, abrindo, assim, margem para um comportamento em que tudo pode e tudo é urgente. Dessa forma, o indivíduo acha que pode roubar o objeto desejado, ignorar a figura do outro, buscar apenas a satisfação de si mesmo, negar a autoridade e abrir espaço para a prática do incesto. Desenvolvendo essa forma de comportamento, a família, a escola e o governo não representam mais a lei.

O Nome-do-Pai é o agente da castração. A castração transmite um ponto de falta impossível de ser satisfeito. A violência mostra uma falha dessa função paterna. O declínio do saber e do poder do pai, que representa a lei, é agravado pelo domínio do capitalismo. A castração faz com que o sujeito passe a ser regulado pela culpa, os que não cumprem esta passagem não reconhecem suas faltas e falhas. Sem reconhecer o outro em sua diferença, ele passa a usá-lo como objeto para o seu gozo (ORNELAS; CALIXTO, 2007). A castração possibilita o exercício da humildade e o reconhecimento das próprias limitações, percebendo o outro como sujeito com suas diferenças, e não como um simulacro de si mesmo.

A Lei do Pai é a primeira lei que a criança internalizará, possível, somente, com este complexo de castração, fazendo com que tente outras possibilidades de existir, de lidar com a falta, com o novo e o inesperado, de fazer uso da razão e do juízo. Com a castração, o sujeito passará a lidar com a própria sexualidade de forma saudável, buscando um parceiro que possibilitará o acolhimento de seus filhos e a capacidade de suprir suas necessidades. A lei do pai, bem elaborada, contribui para constituição de um adulto com uma estrutura psíquica saudável. Sem a lei do pai, surgem sérios desvios, entre eles a prática do incesto. Existe uma relação entre violência e função paterna.

O sujeito é estruturado pelas relações familiares e pelo drama edípico; porém, com o modelo de pais ausentes e despreparados, esses acabam falhando em suas funções. É difícil, para os pais de hoje, frustrar o filho em seu desejo, colocar autoridade e limite. Sem essa lei, esses jovens ficam sem as normas que garantem os limites das pulsões destrutivas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar esta etapa de pesquisa, estudos, debates e análise de um caso clínico, avalia-se se algumas questões foram respondidas e se novas perguntas emergiram durante o processo.

Foi consenso que a descoberta do dado da transgeracionalidade desenvolvida no interior da intimidade familiar, que impossibilita a ruptura da violência. Isso é sustentado pela ideia de que há uma família incestuosa em que todos são cúmplices do incesto.

Trata-se também de uma descoberta a consideração de que o silêncio pode traduzir uma vergonha ou mal-estar da família. Tal silêncio não é compatível com o processo evolutivo, no qual não cabe mais o incesto, uma vez que o ser humano trocou uma parcela do gozo genital pela cultura. É preciso um esforço individual e coletivo para obstruir as manifestações pulsionais que não estejam de acordo com esta decisão da humanidade. Vimos que esta ideia é clara em Totem e Tabu, quando Freud (1913) coloca a proibição do incesto como ponto principal para a criação da civilização humana.

Para Roudinesco e Plon, Freud trouxe um novo esclarecimento quanto à proibição do incesto e à origem das sociedades: a horda não existiria em lugar nenhum. O estado original era a forma internalizada em cada sujeito (ontogênese), de uma história coletiva (filogênese) que se repetia ao longo das gerações. Contudo o incesto não havia nascido de uma repulsa dos homens por essa prática; mas, ao contrário, havia um desejo de incesto, cuja proibição foi instaurada sob a forma de uma lei. Em lugar da origem, um ato real: o assassinato necessário. Em vez do horror ao incesto, um ato simbólico: a internalização da proibição (Roudinesco e Plon, 1998, p. 758-759).

Consideramos que a família guarda essa marca de um instituto que tem as suas normas internas e age de acordo com um consenso social, sendo o incesto um claro descompromisso com o acordo social.

Apesar de todos os conflitos familiares que vivemos neste período da pós-modernidade, concordamos com Roudinesco (2003): “a família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”.

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