O cavalheirismo sempre agradou e agrada as mulheres. Essa expressão afirmativa não é tão simples assim, na verdade, ela pode ser convertida em uma pergunta uma vez que existem mulheres que percebem o cavalheirismo como uma expressão machista. Será que existe alguma relação entre o cavalheirismo e o machismo? Será o cavalheirismo a vivencia da virtude da polidez? Diante das continuas discussões sobre a mulher na sociedade, esse assunto valeria uma reflexão? É o que vamos saber agora, conversando com a psicóloga e sexóloga Sônia Eustáquia.
1 – Afinal, o que é o cavalheirismo? Como anda a prática do cavalheirismo hoje em dia?
O cavalheirismo é o ato de ser cordial principalmente com as mulheres. É uma ação, uma característica, um atributo ou comportamento de cavalheiro que é uma qualidade de quem demonstra gentileza, cortesia, civilidade. É também um ato que demonstra generosidade e nobreza de sentimentos. Um homem pode ser cavalheiro com outro homem ou com qualquer pessoa independente do gênero, idade, cor, religião ou orientação sexual. Atualmente o cavalheirismo tem sido discutido e compreendido como uma prática machista.
2 – Porque a prática do cavalheirismo pode ser considerada uma prática machista?
Algumas pessoas percebem que uma ação de cortesia vinda de um homem, dirigida a uma mulher, é uma ação que a coloca numa posição de fragilidade e de desigualdade, partindo do pressuposto de que a mulher não precisa dessa ação, uma vez que ela é capaz de se auto conduzir em quaisquer situações e independe do homem para isso. Por exemplo, abrir a porta do carro, carregar uma sacola pesada, passar na frente etc.
3 – O que é a virtude da polidez?
A polidez é a primeira virtude, porque sem ela as outras não acontecem. Quase sempre as pessoas polidas são muito inteligentes e se esforçam a cada segundo para serem na pratica do cotidiano uma pessoa sensível, compreensiva, paciente e tolerante, com atitudes e comportamentos do outro, especialmente com o que não nos agrada nas pessoas de nosso convívio duradouro ou temporário. A polidez pode ser identificada como um “moderador psíquico” , permitindo às pessoas se harmonizar com as diferenças humanas que nos tornam únicos. O A polidez é como um seixo (pedra polida de um rio): a vida, a experiência, a educação e o tempo podem lapidar uma pessoa nos seus atos e palavras. Assim, essa nossa dança nas águas da vida, ao longo dos anos, vamos nos permitindo aprender a polidez tão necessária como ar que respiramos
4 – O que é um pensamento e uma conduta machista?
Machismo é o comportamento, expresso por opiniões e atitudes, de uma pessoa que recusa a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros sexuais, favorecendo e enaltecendo o sexo masculino sobre o feminino. O machismo é a ideia errônea de que os homens são “superiores” às mulheres.
A ideologia do machismo está impregnada nas raízes culturais da sociedade há séculos, tanto no sistema econômico e político mundial, como nas religiões, na mídia e no núcleo familiar, que é apoiado em um regime patriarcal, onde a figura masculina representa a liderança.
Neste cenário, a mulher encontra-se num estado de submissão ao homem, perdendo o seu direito de livre expressão ou sendo forçada pela sociedade machista a servir e assistir as vontades do marido ou do pai, caracterizando um tradicional regime patriarcal. O ideal machista divide o mundo em “o que é feminino” e “o que é masculino”, como profissões, trejeitos, expressões, manifestações, comportamentos, emoções e etc. De acordo com a convenção social do machismo, o homem deve seguir o estereótipo masculino, enquanto que a mulher deverá agir segundo o que foi pré-definido como feminino.
5 – O movimento feminista tem como base, quais princípios?
O feminismo é um movimento social, filosófico e político que tem o ideal contrário ao do machismo, pois luta pela igualdade de direitos e deveres entre os homens e as mulheres.
Graças às reivindicações feministas, as mulheres conquistaram durante o século XX direitos que antes eram garantidos apenas para os homens, como o divórcio, o voto em eleições, concorrer a cargos do governo, entre outros.
O movimento feminista tem como principal objetivo desconstruir o discurso enraizado na sociedade contemporânea do machismo, conscientizando as pessoas sobre a ausência de diferenças entre os gêneros.
6 – As mulheres já conquistaram muitas posições, o que as colocam em terreno de igualdade com homem, o que ainda falta conquistar?
As feministas querem por exemplo o fim da violência de gênero – no Brasil, a cada 12 segundos uma mulher é violentada, de acordo com uma pesquisa da Secretaria de Políticas para Mulheres do Governo Federal, a cada 10 minutos, uma mulher é estuprada, de acordo com o Mapa da Violência, e a cada 90 minutos uma mulher é assassinada, de acordo com o IPEA. Todas essas violências estão relacionadas à questão de gênero – são casos que durante muito tempo foram chamados de “passionais”, são casos que acontecem dentro de casa, no seio familiar, e que se diferem da violência que atingem os homens, que morrem por diversos motivos, mas nunca por serem homens.
No Brasil as mulheres ainda ganham em média 30% a menos do que os homens para exercer a mesma função, de acordo com uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Mulheres também são maioria no trabalho doméstico, acumulando funções dentro e fora de casa. São as maiores vítimas de assédio sexual no trabalho, normalmente cometido por homens em situação de hierarquia superior. Enfim, por vários motivos, ainda há muito o que conquistar em termos de direitos.
7 – Compreender o movimento feminista e o comportamento machista frente a sociedade não é tão difícil, entretanto, existem mulheres que durante toda a sua vida tiveram condutas feministas, inconscientes, eu creio. Nunca carregaram bandeiras e defenderam ideologias; elas simplesmente seguiram a sua intuição e foram a luta, também nunca se queixaram do machismo; caminharam e venceram. Qual é a explicação?
O instinto de defesa é peculiar aos seres vivos e no humano não seria diferente. As mulheres têm internamente muita força para o trabalho e luta. Na verdade, eu as considero mais fortes quando comparadas ao homem. Para a psicanálise, que trabalha com o inconsciente, a mulher “inveja” o pênis e se sente inferior por não o ter e eu considero a sua força de luta passando por essa condição de falta, na busca do preenchimento. Na medida que a mulher luta, ela conquista e se fortalece. Assim, elas seguem, se equiparam ou superam os homens, sem alardes, sem precisar carregar bandeiras.
8 – Como a psicologia explica a essência do homem machista? E se é possível, mesmo que hipoteticamente, tirá-lo do contexto social, para fazer essa reflexão, explica-lo em sua natureza.
Outra vez eu vou recorrer a psicanálise e me atrever a explicar em poucas palavras. Assim como a mulher que pela natureza do seu corpo se percebe em falta (do pênis); o homem em sua natureza se percebe possuidor de algo que a mulher não tem, o falo, representado pelo pênis. Por algum motivo isso lhe dá poder e ao mesmo tempo medo. Inconscientemente, ele busca preservar essa condição. Entretanto, possuir o falo não basta, o homem passa a vida em estado de medo (inconsciente) de perder esse falo. Este medo é simbolizado na prática, pelo desejo de dominação, da mulher e de outros objetos que ele gosta, lhe dá prazer ou quer possuir. Daí a natureza antropológica machista, que foi se somando ao longo da civilização com outros elementos sociais e culturais.
9 – Na sequência da reflexão sobre a natureza ou essência dos humanos, quem é a mulher? O que ela quer?
É uma pergunta difícil de ser respondida até mesmo pela psicanálise, que não conseguiu objetar até o momento, entretanto, eu acho que a mulher quer ser respeitada normalmente. Ela não reivindica tratamento especial, por isso a grande discussão atual e midiática sobre o cavalheirismo como atitude condescendente, protecionista e benevolente pró mulher, que deve dar lugar à gentileza e a polidez. Se a mulher compete pela igualdade, não há porque ela exigir um tratamento diferenciado. Isso seria um contrassenso.
10 – O que estamos tratando hoje, não tem nenhuma pretensão moral, pelo contrário, estamos conversando sobre as possibilidades em ampliar as potencialidades femininas e masculinas para o bem de cada um. Em que e como o movimento feminista pode ajudar a sociedade?
O movimento feminista, ainda hoje, promove discussões acirradas em torno de suas propostas e reivindicações. Este movimento está em articulação com outros movimentos sociais, tais como, o movimento operário e o movimento estudantil vem contribuindo de forma incontestável para a consolidação do processo de redemocratização do país, porque há ainda uma grande parte da população com uma visão demasiadamente deturpada e estereotipada a seu respeito.
11 – O ser humano já nasce virtuoso ou se torna portador de virtudes?
O homem nasce primitivo, ou com algum senso de sobrevivência, mesmo sendo o único a ser totalmente dependente do adulto, mas com todos os requisitos para se tornar o que a família, sociedade e cultura conduzir. Ele pode se desenvolver para o bem ou para o mau. Por isso as virtudes podem ser aprendidas.
Entrevista concedida à Rádio Inconfidência
Revista da tarde – Quadro Amor e Sexo
31 de janeiro de 2017