ESTUPRO
Entrevista concedida a Rádio Inconfidência
Em 07 de junho de 2016
Todo mundo concorda que o estupro é um dos piores crimes que existem. Ainda assim, 99% dos agressores sexuais estão soltos. Culpa de uma tradição milenar: o nosso hábito de abafar a violência sexual a qualquer custo. Para falar sobre o assunto conversamos agora com a sexóloga Sônia Eustáquia Fonseca.
1 – Sabemos que o estupro é a prática não consensual do sexo e outras atitudes de violência que envolvem o ato. Para caracterizar o estupro, o que mais compõe o quadro?
Estupro, coito forçado ou violação, como você disse, é a prática não consensual do sexo, imposto por meio de violência ou grave ameaça de qualquer natureza por ambos os sexos. Ele consiste em qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração. Ainda que o estupro vitime ambos os sexos, as mulheres são as vítimas historicamente mais atingidas. A legislação brasileira é rigorosa. Enquadra-se na definição de estupro qualquer “ato libidinoso”, seja ele penetração, apalpação ou beijo forçado. O estupro é um ato perverso, praticado não necessariamente por perversos. Não tem nada a ver com o desejo pela mulher. É um ato de narcisismo: os agressores, inseguros com o que lhes é diferente, tentam resolver isso através do domínio perverso.
2 – Como são as penas aplicadas em quem estupra?
Elas variam de seis a quinze anos de prisão. O senado brasileiro aprovou a condenação para até 20 anos quando o estupro é coletivo.
3 – Nós sabemos que as estatísticas apresentadas não são corretas, porque ainda é muito pequeno o número de pessoas que denuncia. Gostaria que você comentasse isso.
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos cerca de 50 mil pessoas são estupradas no Brasil. Esses são os números oficiais, obtidos a partir da papelada formal. Mas eles não correspondem à realidade. O estupro é um dos crimes mais subnotificados que existem e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estima que os dados oficiais representem apenas 10% dos casos ocorridos. Ou seja, o verdadeiro número de pessoas estupradas todos os anos no Brasil é mais de meio milhão. Nos EUA, onde existem dados longitudinais, de acordo com o Center for Disease Control and Prevention, uma em cinco mulheres vai ser estuprada ao longo da vida.
São vários os motivos, mas, podemos começar citando as próprias delegacias, que as vezes não têm profissionais treinados que saibam lidar com as vítimas. Uma mulher mal atendida desiste da denúncia – Os casos registrados são baixos porque existe um comportamento persistente que cerca o estupro: o silêncio. Como você mesma disse vítimas não denunciam seus agressores, policiais não investigam as acusações, famílias ignoram os pedidos de ajuda, instituições não entregam seus criminosos – esses mecanismos invisíveis fazem com que 90% da violência sexual jamais seja conhecida por ninguém. E isso, sim, é um crime ainda maior do que a soma de cada caso.
4 – É comum as mulheres que foram a uma delegacia denunciar e também quando resolveram contar para alguém, perceberem que estão sendo recebidas com desconfiança. Gostaria que você comentasse.
Isso acontece com quem foi estuprado o tempo todo. Mulheres relatam como são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas perguntas podem vir de qualquer um. Comentários assim surgem de amigos, familiares, policiais, médicos, advogados – e até de juízes. Parece que todas as instâncias trabalham para abafar o crime e jogar o assunto para baixo do tapete.
5 – Onde estão os estupradores em potencial?
É difícil achar no mundo uma grande instituição que não tenha varrido para debaixo do tapete algum caso de estupro. Exércitos, empresas, famílias, universidades e igrejas acobertam estupros rotineiramente. A Igreja Católica foi apenas a mais famosa organização religiosa a fazer isso quando bispos e padres foram acusados de abusar sexualmente de crianças no começo dos anos 2000. Durante muito tempo o Vaticano fingiu que não sabia de nada. O mesmo aconteceu com os Testemunhas de Jeová na Inglaterra, onde o pastor Mark Sewell foi condenado por abusar de mulheres e crianças ao longo de anos. E acontece também com igrejas evangélicas aqui no Brasil, onde pastores de diversos Estados já foram acusados de abusar de meninas durante supostos “tratamentos espirituais”.
É muito comum ocorrer em família e também de pessoas supostamente respeitáveis só porque tem fama poder e dinheiro
A lógica é perversa: comparam-se anos e anos de fama e respeitabilidade de uma abstrata entidade com a dignidade de uma pessoa particular. Não é de se estranhar que a pessoa estuprada acabe levando a pior.
6 – O estupro acaba silenciado pela vergonha da vítima, é ela a palavra-chave em quase todos os casos silenciados?
O estupro é um crime extremamente íntimo, uma violação profunda, como pouquíssimas outras coisas são. Se as pessoas que lidam com esses casos – médicos, advogados, policiais – não tiverem respeito por essa violação, elas não vão conseguir ajudar as mulheres.
7 – Existe mesmo o “meu malvado favorito”? No sentido de o estuprador estar sempre por perto e ser uma pessoa aparentemente normal?
De fato, existe um mito de que estupros apenas acontecem de noite, em vielas escuras, por parte de malfeitores armados e encapuzados que atacam donzelas virginais. A verdade não é bem assim. Provavelmente o dado mais triste sobre estupros no Brasil diz respeito ao perfil das vítimas: segundo o Ministério da Saúde, 70% das pessoas estupradas são crianças e adolescentes de até 17 anos (dá umas 350 mil pessoas ao ano, e a maior parte delas foi violentada dentro de casa por pessoas de confiança, como padrastos ou amigos da família.
8 – No casamento, uma relação sexual forçada pode ser considerada estupro? Entre namorados e amigos numa relação que se inicia consensual e que ao longo do encontro a mulher determina que não quer mais, quando forçada a terminar a relação, podemos considerar como estupro, não é?
Na vida real, boa parte dos casos de violência sexual acontece dentro de casas e casamentos, depois de festas ou encontros, no meio de relações sexuais que começaram consensuais, entre pessoas que já se conheciam e com agressores que nem de longe têm o perfil de “estupradores”. No Brasil, por exemplo, entre 10% a 14% de todas as mulheres vão sofrer violência sexual por parte de seus parceiros.
9 – Por que o silêncio vence? E a culpa? Porque recai tanto nas mulheres?
Pesquisas do Ipea apresenta: 78% dos brasileiros acham que o que acontece entre um casal em casa não interessa aos outros. 63% pensam que casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família.
E como a culpa cai no colo delas: – 59% dos brasileiros concordam que existe “mulher para casar” e “mulher para a cama”.
58% acreditam que, se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros.
10 – Quais são as consequências físicas e emocionais de um estupro para a mulher?
Há uma série de sintomas emocionais e físicos dos quais uma vítima de estupro pode sofrer após esta experiência traumática. Estes podem incluir: Sintomas de ansiedade, estresse, sentimento de impotência, culpa, raiva, incapacidade de se concentrar, vergonha, abuso de substâncias ou tendências suicidas.
Medo e crescente suspeita sobre as pessoas, seus comportamentos e intenções.
Problemas de relacionamento: estes podem surgir como resultado da vítima se tornar menos responsiva emocionalmente, se afastar dos entes queridos ou duvidar das ações e intenções dos amigos e familiares.
Insônia e pesadelos.
Negação: pode haver uma falta de vontade de reconhecer o fato de que você foi estuprada, expressa pela incapacidade de se lembrar do ocorrido.
Flashbacks: você pode acabar repassando as lembranças do estupro, ao ponto de ter dificuldades para distinguir o passado do presente.
Você pode sentir a necessidade de estar em constante alerta, a fim de garantir sua segurança.
Distúrbios alimentares, como bulimia, anorexia ou compulsão.
Disfunção sexual.
Sintomas fisiológicos: estes podem incluir diarreia, constipação, aumento da Cada pessoa absorve o trauma de uma forma diferente, de acordo com a experiência de vida, valores e crenças. O primeiro passo do tratamento terapêutico e conscientizar o paciente de que ele não tem culpa do ocorrido, utilizando técnicas para aumentar a sua autoestima. Em alguns casos, dependendo da gravidade do trauma, e preciso que um médico receite medicamentos que variam de pessoa para pessoa.
11 – O que o psicólogo ou a equipe de atendimento faz para acolher e ajudar a vítima?
Primeiro Momento.
· Avaliação dos sentimentos predominantes (medo, revolta, raiva, culpa, ansiedade, angústia, calma). Avaliação do grau de desorganização da vida pessoal. Avaliação da organização psíquica e mecanismos. Observar as Reações psicossomáticas e encaminhar para médicos específicos. Reações do grupo social em que está inserida (acolhimento e apoio, críticas, discriminação, revolta, expulsão). Aconselhamento sobre DST/HIV/AIDS. Importância de a paciente respeitar o estado emocional em que se encontra e suas limitações. Apoio emocional para a vítima e os familiares.
Segundo Momento.
· Reorganização da vida após a violência sofrida (retorno ao trabalho, à escola, as atividades desenvolvidas). Prevenção de futuras consequências na vida pessoal (estado depressivo, escolhas de relacionamentos, perpetuação da violência). Recuperação da autoestima. Encaminhamento para avaliação psiquiátrica, caso seja necessário. Repercussões no sentimento frente à figura masculina. Observar os sentimentos persecutórios provenientes da violência sofrida.
Terceiro Momento.
Casos em que ocorre gravidez: Sentimentos relacionados à constatação da gravidez fruto da violência sexual (ambivalência, culpa, rejeição, aprovação). Levantamento dos princípios morais e religiosos que podem interferir na decisão ou não pelo abortamento legal. Fantasias relacionadas à gravidez e ao abortamento. Acompanhamento psicológico no decorrer da internação para interrupção legal da gestação, havendo a possibilidade de dar continuidade a este no ambulatório. Apoio psicológico frente às opções outras que não o abortamento legal. É fundamental que a mulher que vivencia esta situação possa se sentir livre, sem preconceitos e julgamentos para fazer sua opção e sinta-se acolhida dentro do seu convívio familiar e da sociedade, qualquer que seja a sua escolha.