A perda da subjetividade pelo efêmero e passageiro

A cultura do voyeurismo e do exibicionismo, blogs e reality shows transformam anônimos em celebridades instantâneas, e quase sempre tudo termina como começa.

O que motiva as pessoas de várias classes sociais acompanharem o cotidiano de desconhecidos seja pela TV, seja pelo computador? O que leva os participantes a explorarem sua intimidade 24 horas por dia, permitirem e gostarem que outras pessoas entrem em sua intimidade? Voyeurismo, exibicionismo, narcisismo ou algum outro fenômeno social? O que ocorreu para que do horror da vigilância emergíssemos até a apoteose voyeurista de contemplação, supostamente em tempo integral, de um grupo de indivíduos exibicionistas confinados em espaço vigiado por câmeras e microfones?

Para Freud, em sua obra O mal-estar na civilização, o ser humano é o ser da impotência e do desamparo; é animal que, para sobreviver e diferenciar o seu “eu” do “não eu”, precisa da presença do outro, principalmente para desenvolver posteriores interrelações em grupo e, ao mesmo tempo, preservar sua integridade individual. Isso implica vínculo e privacidade.

A fama parece exigir a separação dos principais vínculos. É separar-se do privado, da vida rotineira, para que, desgarrado e desenraizado de sua forma de ser, torne-se objeto do olhar do outro. A fama pode ser compreendida pelo conceito de prótese oferecido por Freud — naquela mesma obra — quando explica que a possibilidade de felicidade oferecida aos que anseiam por fama é o uso de uma prótese para substituir atributos inerentes ao humano. Nesse caso, a fama, por ser prótese, não pertence verdadeiramente ao indivíduo e não pode lhe trazer felicidade.

Nossa sociedade tem se mostrado escópica: impõe uma existência vinculada à visibilidade e consequentemente à celebridade, mas, por outro lado, amplia cada vez mais a vigilância e o controle sobre cada indivíduo.

Nos casos dos realities shows e blogs, a vida pessoal e o cotidiano de anônimos se transformam em espetáculo. As evidências têm nos mostrado, através dos altos índices de audiência de programas como o BBB, que a sociedade se delicia em “espiar” a vida de outras pessoas.

Eu creio que, muito mais que o dinheiro e as vantagens materiais oferecidos, o fator motivacional para quem se exibe é a possibilidade de autopromoção e o desejo de sair do anonimato. Num mundo em que a imagem é cada vez mais valorizada — e por isso a exposição em si mesma é colocada como valor —, estar na vitrine da vida por alguns minutos, horas ou dias já está valendo.

O prazer do reconhecimento, mesmo fugaz, faz com que jovens lutem para serem selecionados por esses programas, que quase sempre escolhem representes da beleza, força, virilidade e sensualidade. Basta puxar pela memória e tentar se lembrar de quem foram os personagens dos BBBs anteriores para concluirmos que caíram no esquecimento. São poucos os que conseguem sobreviver na mídia com afazeres e papéis visíveis. Esta instantaneidade parece coerente com os dias atuais, quando tudo é descartável, de consumo rápido e imediato.

Olhar sem ser visto parece aumentar as possibilidades do voyeurismo e alimentar a cultura do exibicionismo. Por um lado, tem quem queira se mostrar; do outro, quem quer ver. Quando termina a motivação de quem quer ver desmantela-se todo o aparato de quem quer se mostrar. A TV alimenta-se inicialmente do voyeurismo preexistente nas pessoas, “bombardeando” o telespectador com propagandas e incentivos de uma possível participação nas vidas dessas pessoas. Pelo lado do telespectador, ver pessoas comuns aparentemente em situações comuns, com conflitos comuns, parece importante para seu aprendizado, e a identificação é imediata. Se se vê uma vez, algo excita uma necessidade de se ver mais. Há apelos publicitários fortes cujos componentes são capazes de produzir uma alteração de consciência no telespectador, que o faz seguir assistindo. Essa fidelidade é que alimenta a cadeia exibicionismo e voyeurismo.

Ver no outro o que não posso ou o que não quero ver em mim é mais cômodo e chega ser prazeroso. A participação em um grupo específico e identificado também torna-se mais fácil quando virtual. Daí vem o sucesso de blogs relacionados a sexualidade, corpo, saúde e relacionamentos.

O voyeurismo virtual ganha força porque há menos exposição de quem vê e porque não é necessário responsabilizar-se. Ademais há possibilidades de um processo de identificação com um mundo lúdico e sem problemas reais, onde tudo é possível e mais fácil. Assim o telespectador pode se ver no outro e, ao mesmo tempo, imaginar um ideal de vida, que jamais poderá ter.

Outra força que aguça o interesse do telespectador é a possibilidade de participar com seu voto, que “parece” ser decisivo no resultado. Num mundo de pouca autonomia política, isso é atraente.

Enfim, toda exibição só faz sentido a partir do momento em que existem interessados no objeto exibido. Esse processo de mão dupla atrai a cada dia um número maior de protagonistas para ver ou para serem vistos. Os participantes entram anônimos e saem famosos, porém esvaziados de sua subjetividade, pois ficam aprisionados à imagem e ao estilo de vida editado pelo programa. Os participantes tornam-se próteses e celebridades reduzidas a objetos de fofocas, bisbilhotice, torcidas e apostas; são iludidos, pois de fato a fama aqui é passageira, descartável e efêmera.

One thought on “A perda da subjetividade pelo efêmero e passageiro”

  1. Gostei! enquanto o artista está no auge da fama, aproveita enquanto está no poder por que depois cai no auge do esquecimento. Tanto sacrifício , tanta disputa, tanta briga de foice para se chegar a fama e ao poder que um dia, fama tem limite e tem seu tempo de duração que um dia tudo se esvai.

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